já arranjou o meu saco, Elisa?; não se esqueceu do meu saco, não?; assim foste repetindo ao longo do dia. e, na manhã seguinte, continuaste; não me desaperte a camisa, Elisa, temos de ir apanhar o comboio!; e para onde vamos, menina?; eu não sei, Elisa, a Maria Arminda é que mandou!
e assim foste, tia lena, no teu recato habitual, como se não quisesses incomodar ninguém na tua partida, e apanhaste esse comboio que a avó mandara.
sei que levas a bagagem cheia, de uma vida que entregaste aos outros, com a tua ternura infinita e o teu sorriso discreto. sei que na bagagem levas um bocadinho de nós, de todos os que tivemos a sorte de partilhar contigo as nossas vidas.
mas fica também tanto de ti connosco. ficam as vezes que encontrámos conforto no teu colo; ficam as noites passadas lá em casa, na cama ao lado da tua, com a Rosinha, a boneca que dava gargalhadas; ficam as férias, as primeiras idas à praia, o carinho; ficam os dias da escola primária, em que nos esperavas à porta, tantas vezes apenas para nos acompanhares nos 200 metros até casa da avó; ficam as tardes em dia de catequese passadas contigo, lá em casa; ficam as tuas palavras e o teu sorriso, de uma doçura imensa, quando nos falavas do nosso amigo jesus; ficam os lanches que a Elisa nos preparava; fica o teu amor pelas bonecas, pelas caixinhas, pelos pacotinhos de açúcar, pelos porta-chaves, pelas caixas de fósforos e por todas as colecções - foi uma paixão que herdámos de ti; ficam as flores de que tanto gostavas; ficam os cães que fizeste sempre questão de manter por companheiros; ficam os dias passados a fazer esculturas de plasticina; ficam os almoços de domingo em tua casa; ficam as noites de natal e os dias de festa em nossa casa; fica aquele prémio de dança que há anos ganhaste no hospital; ficam as idas ao picoto e o teu sorriso ao olhar de cima a cidade; ficam as nossas conversas, já mais recentes, sobre os meus meninos da catequese; fica a tua alegria ao rever, nos últimos anos, os filmes da nossa infância; fica a tua presença, sempre tão inteira, sempre tão conciliadora, sempre tão carinhosa. e ficamos nós, nós que tanto crescemos graças à tua dedicação e ao teu carinho, nós que sempre te olhámos como um modelo e que te continuaremos a levar connosco aonde quer que formos.
agora partes nesse comboio, no lugar ao lado da avó. sei que partes em paz. sei que estavas preparada para esta viagem e estás certamente sorridente, a olhar por nós, como sempre fizeste.
boa viagem, tia lena. vamos sentir muito, mesmo muito, a tua falta.