quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

o sem-abrigo

estava frio. a noite já ia adiantada e eu tinha frio. o manto que me cobria o corpo era pequeno de mais para me aquecer. encontrara nessa manhã um isqueiro ainda em bom estado, e acendia-o repetidamente. a chama já desaparecera há muito. e agora, eu repetia o gesto de acender o isqueiro numa tentativa desesperada de sentir algum calor.
passavam pela rua muitos olhares perdidos, sem sentido. alguns atravessavam-me sublimemente. tocavam-me de tangente. mas num ápice se afastavam como quem diz "não fui eu!". depois seguiam no seu caminho. sem destino. sem palavras.
eu ria-me da estupidez mordaz desses olhares. seguros no conforto de si mesmos. trocando os passos ao longo do caminho. mas seguros no conforto de si mesmos. sem nexo. sem direcção. sem vida. mortos já, antes da morte. seguros na insistência deles próprios.
eu ali. deitado ao relento. sem tecto nem pão. eu ali não podia ser real. era apenas um pesadelo deles. eu ali. sem-abrigo. morto ainda antes de ter vivido. desequilibrava a sua segurança. e só encontravam de novo o conforto uns passos mais à frente. perante a certeza absoluta de que eu era irreal. como as imagens que viam à noite na televisão, entre a garfada de arroz e uma coxa de frango.

12 comentários:

  1. para além de gostar do texto, gosto do novo visual do blog :) já estávamos a precisar :)

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  2. Um texto duro mas tão real que é uma pedrada no charco da nossa indiferença.
    Um abraço e bom fim de semana

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  3. O teu texto esta lindo *o*
    Achas? Mesmo sem ainda termos estado juntos? xs
    Ps: Também gostei muito do teu ;D

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  4. adoro adoro adoro, os textos estão maravilhosos :)
    sigo!

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