sábado, 1 de fevereiro de 2014

alguém me observava constantemente da janela - effusus #1

era noite e vagueava. por entre rasgos de sombra, tinha a impressão de que alguém me observava constantemente da janela. tinha sempre essa impressão quando vagueava pela noite. fosse qual fosse a rua, a sombra e o odor.

envergonhado, talvez, pela atenção, disputava com a escuridão um lugar à sombra, que se desenhava como um esquisso de manchas, deambulando pelo chão e pelas paredes. é tarde, enzonavam as coisas, já devias estar em casa. e eu pensava que elas falavam de mim, sem saberem que não tinha casa. enquanto alguém me observava constantemente da janela.

escondia-me por detrás de dois caixotes e cobria-me com o pano velho que encontrara no lixo. adormecia sempre ali, sob o olhar inócuo de alguém que me observava constantemente da janela.

dormindo, era eu próprio, de volta a casa, em criança, olhando constantemente da janela, sonhava ser astronauta. sorria, como se o sonho fosse a concretização dele próprio, e olhava com desalento um sem-abrigo, vagueando pela noite e entre as sombras. eventualmente, acordava. desolado. que o sono era o meu único refúgio de um mundo que me afastara da infância. e alguém me observava constantemente da janela.

nunca cheguei a saber quem era, nem qual a janela de onde me via. nunca cheguei a saber se tinha nome ou idade. nunca cheguei a saber o que fazia do outro lado da janela. mas havia um desconsolo no seu olhar, por ser o meu, quando olhava demoradamente as estrelas.

e havia alguém que me observava constantemente da janela. e era sempre o mesmo alguém, sempre da mesma janela.

sentia pena de mim, sonhava ser astronauta.

2 comentários:

  1. simplesmente espectacular. a forma como escreves, o que escreves e a ligação tão harmoniosa entre tudo.

    já tinha saudades de te ler, nuno.

    abraço

    ResponderEliminar
  2. Gostei muito de voltar a ler as tuas palavras Nuno e mais um óptimo texto.

    ResponderEliminar

deixa tu também letras soltas no caminho