Passeio pela cidade que nos acolhe desde o berço, símbolo da nossa identidade. Enquanto ouço os meus passos sincronizados na calçada da rua penso em como o destino, embora não totalmente independente, possui ruas inevitáveis, muito mais do que meras fraquezas e tentações. Ainda agora, namorando montras vestidas por manequins demasiado reais, recordo a primeira vez em que os meus olhos, um pouco desalentados então, pousaram nos teus. Hoje sei que foste tu quem me viu primeiro, quem primeiro especulou acerca daquela rapariga aparentemente tão normal. E estava consumado, e toda a loiça partiu. Mas eu nunca fui normal e tu nunca te ficaste pela especulação. Vejo gente apertada, vergada em resposta ao peso desumano que carrega nas duas mãos pequenas. Falam em crise, porém nunca vi tanta procura. Creio que há mais crises de coração, menos tempo para amar. Talvez seja essa a tua doença, a tua crise existencial que não conseguimos ultrapassar. Talvez seja esse o mal desta cidade, tornando-a cega e alheia ao essencial. Talvez seja por isso que ela, embora nos tenha trazido ao colo desde o berço, nunca proporcionou o nosso encontro, mostrando-me o teu rosto num passeio como este à beira rio. A cidade não ama, nem tem tempo para isso. E eu fui contra o imposto, contra o estipulado e quando finalmente o destino inevitável nos juntou longe daqui eu amei-te inconscientemente. Amei-te muito e não sabia, porque na cidade de onde vinha não havia tempo para amar e eu, que brincava aos corações feridos há demasiado tempo, não me sentia preparada para abdicar da minha estabilidade vergonhosa. Deixei-me estar, filha fiel da cidade divorciada. Mas eu tinha amado, tu tinhas feito algo parecido, não podíamos fugir. Voltaste, agora no centro da cidade que nos corrompe e afasta e, com um olhar vindo do fundo do mar revolto e apertado, despiste-me o manto das dúvidas, das defesas, dos argumentos. Passeio pela cidade que nos acolhe desde o berço, símbolo da nossa identidade. Vejo um ponto de luz por cima das cabeças que formam a multidão cinzenta, vergada em resposta ao peso desumano que leva nas mãos pequenas, no coração vazio. Sorrio disfarçadamente, escondendo os olhos por baixo da aba do chapéu azul, como que lendo nesse ponto de luz a tua imagem. És tu quem caminha para mim, iluminando corações perdidos e mal amados. E em plena cidade que não ama nem sabe amar, recordas a menina que viste há um tempo atrás pela primeira vez e á qual adjectivaste de normal no teu pensamento, prevendo uma história comum, um corpo dado como tantos outros a troco de um coração vazio. Tiras-me o chapéu e os cachos do meu cabelo agora longo escorrem pelos ombros morenos e saudosos de ti. Não, não sou normal, a nossa história não é comum. É que nós, mal ou bem, temos a capacidade de amar e o meu corpo é dado ao som do teu suspiro apaixonado.
Vejam neste blogue http://escritosdeumnescio.blogs.sapo.pt/ uma faceta mais humorística derivada do mesmo título. É o blogue de um grande amigo meu e decidimos fazer um texto a partir do mesmo tema pois, apesar de escritas diferentes, acreditamos que nos completamos com a diferença de cada um de nós ;)
"Tiras-me o chapéu e os cachos do meu cabelo agora longo escorrem pelos ombros morenos e saudosos de ti." adorei :)
ResponderEliminar(só uma observação do ponto de vista de economia, já qe é a minha área: com a crise a procura diminui, mas vendo-a a olho nu, isto é, sem estatísticas, a tendência é parecer que aumentou. isto tem uma explicação simples: as pequenas lojas fecharam, e as pessoas tendem a ir para lojas mais centrais, tende a ir toda a gente às mesmas lojas, daí parecer que há mais procura. Além isso, as pessoas cortam em coisas como férias e refeições fora normalmente, coisas como roupa não costumam sair muito a perder)
"Mas eu tinha amado, tu tinhas feito algo parecido, não podíamos fugir."
ResponderEliminarao amor ninguém consegues escapar, mais tarde ou mais cedo ele aparece, e qdo aparece é mesmo para ficar, ou plo menos para durar... continua a 'amar' pois enqto amas escreves coisas fanatasticas!!! ;)
Beijinhos**** J.M.
ótimo texto. Muito bom teu blog, gostei daqui.
ResponderEliminarMaurizio
Primeiro, quero pedir desculpa pela demora desta resposta, quero também agradecer as palavras simpáticas que sempre me dás e dizer que também tive muito gosto em fazer este projecto contigo.
ResponderEliminarConcordo plenamente com o que disseste quanto á importância das diferentes escritas, e que, de facto, se aprende muito nesta troca de experiências. Continua com o trabalho fantástico que é fruto do teu grande talento, e obrigado por me ajudares a desenvolver as minhas capacidades como pessoa e como escritor.
bjos